Toda árvore que não produz bons frutos será cortada e lançada no fogo. […] Nem todo aquele que diz, Senhor, Senhor, entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai.
(S. Mateus 7, 15-16)
Em nome do Pai e do Filho + e do Espírito Santo. Amém.
Ave Maria…
O Cardeal Ratzinger expõe, no seu livro Introdução ao Cristianismo, um conto no qual, certa vez, houve um incêndio num circo ambulante na Dinamarca. O diretor mandou imediatamente o palhaço, que já se encontrava vestido e maquilado a caráter, para a vila mais próxima, para que buscasse ajuda, advertindo que havia o perigo de o fogo se espalhar pelos campos ceifados e ressequidos, com risco iminente para as casas do próprio povoado. O palhaço correu até a vila e pediu aos moradores que viessem ajudar a apagar o incêndio que estava destruindo o circo. Mas os habitantes viram nos gritos do palhaço apenas uma belo truque de publicidade para levá-los em grande número às apresentações do circo; aplaudiam e morriam de rir. Diante dessa reação, o palhaço sentiu mais vontade de chorar do que de rir. Fez de tudo para convencer as pessoas de que não estava representando, de que não era um truque e sim um apelo da maior seriedade: tratava-se realmente de um incêndio. Mas a sua insistência só fazia aumentar os risos, achavam excelente a sua encenação — até que o fogo alcançou de fato a vila. Aí já era tarde, e o fogo acabou destruindo não só o circo, mas também o povoado.
Comentando este conto, o Cardeal Ratzinger o aplicará ao teólogo no mundo de hoje. Revestido com idéias da Idade Média ou de um outro passado remoto qualquer, o teólogo nem é levado a sério. As pessoas, de antemão, consideram que estão apenas diante de uma representação que pouco ou nada tem a ver com a realidade. De fato, hoje, a doutrina da Igreja é vista como um puro fruto da vida da imaginação, sem ligação com a realidade. Ao argumentarmos com alguém que não defende a doutrina católica ele jamais responderá: “Isto que você diz é verdade“. No máximo ele dirá: “Isto que você diz é interessante“. Há, sem dúvida, uma indisposição do lado dos ouvintes, porque o indiferentismo, o relativismo e o subjetivismo esterilizam qualquer inteligência para a recepção da verdade e para tomá-la como norma que deve dirigir as vidas de cada um. O fato é que cada um se dá conta de que a verdade não é um chapéu que se coloca sobre a cabeça e que se retira quando se quer. Ela é, antes, uma lança que transpassa a alma e que exige uma decisão dela, decisão cheia de sacrifícios que muitos decidem não fazer e, para se justificar, recorrem ao indiferentismo e ao subjetivismo.
O Cardeal, porém, nos alertará para um perigo a ser evitado na aplicação deste conto ao teólogo. Este conto simplifica um pouco o problema. Poderíamos dizer que bastaria o palhaço trocar de roupa e retirar a maquilagem para que tivesse sucesso diante dos habitantes do povoado. Citando o próprio Cardeal, “Será que o caso é tão simples assim? Basta aderir ao aggiornamento, retirar a maquilagem, andar à paisana e adotar a linguagem do século ou de um cristianismo sem religião, para que tudo fique bem? Basta a troca do figurino para que as pessoas venham correndo, cheias de ânimo e disposição, para ajudar a apagar o incêndio que o teólogo diz estar ameaçando a todos? Eu diria que esta teologia realmente desmaquilada e metida numa moderna roupagem civil, que hoje se apresenta em todos os lugares, torna esta esperança bastante ingênua” (Cardeal Joseph Ratzinger, Introdução ao Cristianismo, Edições Loyola: São Paulo, 2005, p. 32).
De fato, uma adaptação aos costumes do mundo moderno não produziu o resultado esperado. A causa está em que os princípios propriamente modernos, concretizados no comportamento moderno, são incompatíveis com a doutrina católica. Não é uma abertura a esses princípios e modos de viver que produzirá mudanças na sociedade, fazendo-a dócil à doutrina de Cristo, ensinada pela Igreja. É necessário ter bem claro na inteligência que um princípio, uma vez aceito, cedo ou tarde produzirá suas consequências: em uma semana, um ano, cinco anos, cinquenta anos…, mas os produzirá. Por exemplo: há séculos se afirma a igualdade entre homens e mulheres e a afirmação de que a finalidade primeira do casamento não é a de ter filhos; hoje a sociedade moderna tirou as consequências, chegando à defesa do casamento homossexual. Os princípios modernos justificam e orientam o comportamento geral dos homens para a busca dos interesses mais baixos do homem machucado pelo pecado original, mas indispõem os homens para as verdades da fé, a aceitar as verdades reveladas porque a autoridade de Deus as sustenta, ainda que o homem não as compreenda.
Por outro lado, somos obrigados a constatar que, infelizmente, algo semelhante acontece com os católicos que são estimados como sendo os mais zelosos. Pio IX se queixava disso já no século XIX. Infelizmente, mesmo entre os ditos tradicionalistas, habitualmente considerados como vigorosos defensores da religião, há um espírito sutil que bloqueia, muitíssimas vezes, a aplicação das verdades de fé e da moral nas vidas particulares. São ensinamentos, tem-se a impressão, que têm pouco ou nada a ver com a realidade, e continua-se a viver, em maior ou menor grau, como o mundo vive; a falar como o mundo fala; a ver, assistir e ouvir o que o mundo vê, assiste e ouve; a se comportar como o mundo se comporta; como se isso tudo fosse desprovido de consequências.
Muitos católicos dirão que não defendem isso. Porém, o que se vê na prática é um modo de agir onde parece ser suficiente conhecer o catecismo (quando de fato ele é conhecido) e ir à missa, ainda que tudo o mais esteja em dissonância com o mesmo catecismo e com os princípios mesmos ensinados pela liturgia. Este espírito sutil é, ao menos em parte, constituído por princípios falsos que são aceitos passivamente. Não é necessário defendê-los explicitamente. Aliás, este é o caso menos comum. Basta aceitar um certo comportamento, no qual esses princípios universais estão concretizados. Não será somente o agrado obtido pelos sentidos que se receberá, mas se receberá também com a inteligência os princípios que regem aquele comportamento, ainda que não se tenha uma visão clara disso. O resultado será a contradição. Esta quimera instaurada na alma não pode ser suportada por muito tempo. Ninguém pode servir a dois senhores e, finalmente, se não se vive como se pensa, se terminará pensando como se vive; não somente por conveniência, mas também porque a inteligência vai se acostumando, lentamente, pelos atos errados feitos, aos princípios errados que os regem.
É incorerente, por exemplo, dizer que o rito romano tradicional manifesta bem a ordem hierárquica existente entre o clero e os fiéis, entre o bispo, o sacerdote, o diácono e o subdiácono, e o respeito que se deve dar a eles, ao mesmo tempo em que se fala do Papa com comentários desrespeitosos na internet ou em conversas, fazendo tábua rasa desses mesmos princípios que se pretende defender — devo dizer que já vi comentários nos quais usa-se um tom que jamais seria lícito a um filho usar com seu pai, quanto mais com o Papa. É incoerente dizer que o canto gregoriano e as orações ditas pelo sacerdote em voz baixa favorecem a oração e o recolhimento, ao mesmo tempo em ouvimos as músicas modernas, feitas de tal modo que nelas a inteligência é prejudicada e a impulsividade exaltada (e em muitas das quais as letras são imorais), com um evidente prejuízo da vida de oração. É incoerente defender que a orientação do padre na missa, versus Deum, e o uso do latim, colocam Deus de modo claro no centro da vida cristã, ao mesmo tempo em que preenchemos nosso tempo com futebol, maquiagem, video-game e filmes.
Este comportamento, sob certo aspecto, é pior do que o do católico que adota um discurso vazio de religiosidade, que se adapta ao mundo moderno para buscar convencer outro a ser católico. Aqui, ao menos, a intenção é boa. Mas o que pensar daqueles que jogam o pano e se conformam ao mundo moderno e as suas práticas simplesmente para ser igual a ele e mais nada, simplesmente porque têm enfado da vida católica e vergonha de se mostrar diferente da massa? É certo que, depois da morte, nenhum jogador de futebol, nenhum batom, nenhum ator poderá ajudar no que quer que seja para mudar o juízo de Deus.
É verdade que não seremos nós que salvaremos a Igreja, mas é a Igreja que nos salvará e somos nós que dependemos dos bens que a Igreja nos comunica. Mas é inegável que a Igreja é constituída também pelos batizados e que um maior ou menor crescimento dela, um maior ou menor resplendor da vida que Deus colocou nela, depende também de nós. Cristo não teve o peito transpassado por uma lança sem esperar de nós uma retribuição à altura. Ele espera e quer que nós façamos parte da solução, e não do problema.
“Tenho ao meu alcance querer o bem, mas não o realizá-lo“, diz São Paulo (Rom. 7, 18). Para realizá-lo efetivamente é necessário o auxílio da graça de Deus. Ela, porém, é dada a todos. Deus não deixa de dar a ninguém as graças necessárias para a salvação. Mas não se deve insistir tanto na graça a ponto de comprometer a necessidade da vontade humana para alcançar a salvação. Nenhuma árvore, nenhuma pessoa será cortada e lançada no fogo sem culpa própria. Não podemos negar: amar a Deus que não vemos é mais difícil do que amar as criaturas que vemos. Porém, é necessário insistir, Deus dá a todos as graças necessárias para isso e não despreza nenhuma pessoa que deseja amá-lo sinceramente. Para todos aqueles que o amam, Ele dará uma recompensa que nenhum olho viu, nenhum ouvido ouviu, nenhum coração alcançou neste mundo, e “Deus enxugará toda lágrima de seus olhos, não haverá morte ou luto, nem gritos nem dores, porque as coisas antigas passaram” (Apoc. 21, 4).
Em nome do Pai e do Filho + e do Espírito Santo. Amém.
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