Sermão da Quinquagésima (2018)

Em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo. Amém.

No Evangelho de hoje vemos Jesus preanunciar sua Paixão dolorosa, bem como o milagre da cura do cego, após ele ter insistindo em pedir a cura. Na leitura da epístola, por sua vez, São Paulo fala que sem a caridade, o resto da vida espiritual de nada vale.

O que podemos aprender com isso?

Em primeiro lugar, que a caridade é o cume e o sinal de uma verdadeira vida espiritual. Todavia, para aqueles que não a possuem, ou a possuem bem pouco, a oração é um meio excelente para se pedir aquilo que reconhece que falta em si.

Essa petição não deve ser presunçosa, mas humilde, palavra essa difícil de entender. Em geral, apenas a pessoa humilde entende bem o que é ser humilde, por isso é difícil de falar sobre ela de modo efetivo. Ainda assim, a graça invisível de Deus pode sempre ajudar quem escuta com sincera atenção.

Uma característica da oração humilde é a de não se achar digna de ser atendida, mas coloca a esperança nas mãos de Deus para Ele agir como lhe aprouver. Isso justifica a insistência da oração, pede-se não uma vez, mas repetidas vezes aquilo que se considera útil para si, como fez o cego do Evangelho de hoje. Mas a humildade não deve se limitar apenas nessa repetição da pessoa que se considera miserável e indigna de ser atendida pela majestade divina. É preciso que ela seja humilde em aceitar as coisas como Deus quiser fazer. Dito de outro modo, após pedir algo, aceitar que Deus execute esse “algo” quando e como Ele achar melhor.

Muitas vezes pedimos algo a Deus nas orações e Ele responde à nossa oração, mas não aceitamos as coisas tais como Deus dispõe. Queremos que tudo seja exatamente do nosso jeito, chegando mesmo a nos irritar ou desanimar na oração. Isso é claramente falta de humildade na oração, perdendo assim a ocasião de tirar bons frutos daquilo que Deus nos oferece em sua infinita misericórdia.

Um obstáculo a essa aceitação pacifica da vontade de Deus em nossas vidas está no nosso apego desordenado das coisas do mundo e da nossa vontade própria. A Quaresma deve sobretudo nos ajudar a nos desapegar dessa nossa vontade própria que tudo quer à sua maneira, passando por cima de outras pessoas e, às vezes, por cima até mesmo do próprio Deus.

Quero deixar claro aqui que por “vontade própria” não significo nossa vontade pura e simples, da qual não faz sentindo nos abstermos como pretendem loucamente os budistas, pois ela em si é boa. Por “vontade própria” significo a desordem na nossa vontade decaída pelo pecado original que, por orgulho, busca tudo para si e nada para os outros.

Muitas vezes temos projetos com finalidades boas, mas ignoramos que Deus é o dono de tudo o que é nosso, logo a realidade e a Providência Divina podem livremente interferir de modo que tenhamos que mudar o projeto ou abandoná-lo por completo.

Para “ler” corretamente esses sinais da Providência é evidente que é preciso de um olhar claro e um afeto puro, isto é, a fé e a caridade, sem as quais, perturbados pelas nossas paixões desordenadas, não conseguiremos analisar corretamente o caminho a seguir.

Um critério simples é ver os frutos: se são maus, se perco a paz da alma e crio divisões com os meus próximos, logo é sinal que algo não vai bem e algo deve ser corrigido nas nossas decisões. Muito aproveitam aqui aqueles que sabiamente pedem conselhos para um padre de confiança, pois nem sempre vemos com facilidade o nosso redor e quem está de fora pode mais facilmente ver o que não vemos, sobretudo quando possuem uma graça de estado própria para isso. O tempo também ajuda a vermos melhor as coisas, por isso devemos evitar tomar decisões rápidas e precipitadas, quando não há uma real urgência no caso.

Se fazemos algo com caridade genuína, pois é possível teatralizar uma certa “caridade” e uma certa “vida espiritual”, então os frutos obrigatoriamente serão bons. Mas se é nossa vontade, apoiada no orgulho, quem decide nossas ações, então com o tempo isso acaba deixando marcas tenebrosas em nossas ações, não apontando mais para Deus, mas para nós mesmos.

Claro que tudo isso pode ser corrigido a qualquer momento, basta fazermos um ato de arrependimento e mudarmos nosso coração humilhando-o. Mas, infelizmente, isso é mais fácil de ser dito do que feito. Por isso não devemos desperdiçar essa época da Quaresma que logo se iniciará para acostumarmos a tornar nosso coração humilde, através da humilhação da nossa vontade própria, não dando a ela tudo o que ela pede, como fazemos no jejum de 4ª feira de cinzas e da 6ª feira Santa, bem como na abstinência de carne nas outras 6ª-feiras do ano.

Enfatizo aqui os dizeres de São Paulo em sua Carta aos Gálatas: “andai segundo o Espírito e não satisfareis os desejos da carne. Efetivamente, a carne tem desejos contrários ao espírito, e o espírito desejos contrários à carne: estas coisas são contrárias entre si, para que não façais tudo aquilo que quereis.” (Gal 5, 16-17).

Não fazer tudo o que se quer, esse é o grande princípio que deve reger toda e qualquer penitência que nos imporemos nesta Quaresma, de modo que mantendo nosso coração pequeno, Deus possa olhar com compaixão para nós e atender nossas preces naquilo que mais precisamos e que não raro ignoramos.

Em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo. Amém.

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