Sermão do V Domingo depois da Páscoa

Aquele que considera atentamente a Lei perfeita da liberdade e se mantem firme, não como ouvinte que se esquece mas para cumprí-la, este, praticando-a, será feliz“.

(S. Tiago I, 25)

Em nome do Pai e do Filho + e do Espírito Santo. Amém.

Ave Maria.

Como havia dito no último sermão todos os domingos entre a Páscoa a Pentecostes são como que uma continuação da solenidade pascal. Hoje o introito, o ofertório e a comunhão cantam um vivo reconhecimento pela Paixão, Morte e Ressurreição de Nosso Senhor. Após o seu triunfo sobre a morte e o pecado ele difundiu no seu corpo místico a plenitude de sua divindade, a graça santificante, as virtudes e dons sobrenaturais, os carismas de Espírito Santo e a glória suprema da eternidade.

Todos estes bens que Nosso Senhor deu às almas produzem naturalmente nelas um movimento de gratidão para com Deus. Santo Tomás escreve que todo efeito tem um movimento natural de retorno em direção a sua causa. Este é o fundamento da gratidão e se há alguém ao qual estamos primeiramente obrigados pela gratidão este alguém é Deus. Ele é o princípio primeiro de todos os nossos bens. Por isso a ordem natural exige que nós nos voltemos a Deus, nosso benfeitor, para lhe agradecer. Se entre os homens, que são cheios de defeitos e vícios, a ingratidão é mal vista, o que não será ela aos olhos de Deus?

Nossa dívida é muito grande para com Nosso Senhor. Ainda quando éramos seus inimigos, ele morreu na cruz por nós e ressuscitou para nos livrar gratuitamente de um castigo eterno. Gratuitamente para nós, mas para ele foi um sacrifício que para nós é inimaginável, tão grande que o fez exclamar: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?“, ele que antes havia ouvido de seu Pai: “Este é o meu Filho bem-amado, no qual ponho todas as minhas complacências“. Para nos dar todos esses bens ele saiu do Pai, veio ao mundo, deixou o mundo e voltou ao Pai.

Nós todos nos lembramos da parábola na qual dois devedores haviam sido perdoados pelo mesmo credor (São Lucas 7, 36-50). Um deles devia cinquenta denários e o outro devia muito mais, devia quinhentos. Trezentos denários equivaliam ao salário médio anual de um trabalhador. O apóstolo S. Felipe havia calculado, na ocasião de uma das multiplicações de pães, que duzentos denários bastavam para dar um pedaço de pão para mais de cinco mil pessoas. Depois de apresentar a situação Nosso Senhor perguntou ao fariseu Simão, dono da casa em que comia: “Qual deles o amará mais?“. “Simão respondeu: Suponho que aquele a quem perdoou mais“. E Cristo lhe disse: “Respondeste bem“. Nós todos devíamos, e devemos, muito mais que quinhentos denários a Nosso Senhor. Nós lhe devemos nosso corpo e nossa alma, que valeram o seu sangue. Devemos o uso que fazemos deles.

Por isso pedimos na coleta da missa de hoje que Deus nos inspire primeiramente sentimentos de justiça e de piedade, que pensemos, inspirados por Deus, o que é reto. Nossa alma, assim, retribuirá a Deus o que pode. Em seguida pedimos que nos dê a força de traduzir estas inspirações em atos, e será a vez de nosso corpo retribuir a Deus o que pode.

Pensar e desejar o que é reto e, sendo governados por Deus, fazer o que nos inspirou. Foi para isso que Deus nos criou. Deus não criou o homem e lhe deu inteligência e vontade para falar inutilidades, para a impureza, para a inveja, para querelar, para falar mal dos outros, para falar grosserias e palavrões: “Um homem que se habitua a uma linguagem grosseira nunca alcançará a sabedoria” (Eclesiástico 23, 15). Como me disse uma vez um padre, as abelhas produzem cera e mel, as vacas produzem leite e as galinhas produzem ovos. Mas o homem não produz nada e se não produzir boas obras e louvor de Deus então ele não serve para nada.

São Tiago, na epístola de hoje, não é menos claro: “Se alguém pensa ser religioso, mas não freia sua língua, engana seu próprio coração e sua religião é vazia“. E São Tiago continua: “Eis a religião pura e incontaminada diante de Deus Pai: visitar os órfãos e viúvas em suas tribulações e conservar-se incontaminado do mundo“.

É necessário traduzir nosso culto a Deus, que nasce também de nossa gratidão para com ele, em atos, amar a Deus com o suor de nosso rosto e com o vigor de nossos braços, como dizia São Vicente de Paulo para seus padres quando lhes dava suas conferências. São Vicente de Paulo não ajudava os pobres para acabar com as desigualdades sociais, não dava comida para eles porque os via como um estômago a ser preenchido, deixando suas almas, o que eles têm de mais importante, em segundo plano. Ele combatia a pobreza porque a pobreza na qual os pobres estavam os impedia de praticar a religião católica. “Não vos preocupeis com o que haveis de comer ou vestir. São os pagãos que pensam assim. Buscai primeiro o reino de Deus e tudo o mais vos será acrescentado“.

Essa caridade para com o próximo é um excesso da caridade que temos para com Deus. Por ela amamos a Deus por si mesmo sobre todas as coisas e a nós e ao próximo por amor a Deus. É a mesma virtude da caridade, mas que tem a Deus, a nós e ao próximo como objeto. É a mesma água que depois de encher um copo (amor por Deus) transborda sobre o próximo. São dois elos da mesma corrente de ouro, diz São Gregório Magno.

A perseverança neste amor por Deus e nas boas obras que transbordam dele não é possível à natureza humana deixada as suas próprias forças. A caridade é uma virtude sobrenatural, infusa, que aumenta não por simples repetição de atos, mas somente por atos mais intensos que os anteriores. Imaginem que temos um termômetro que marca 30 graus e outro que marca também 30 graus. Ao juntarmos os dois não teremos 60 graus, mas 30. Os 30 graus do primeiro não puderam acrescentar nada ao segundo termômetro. Para termos uma temperatura maior é necessário que o calor aumente além de 30 graus.

É assim, de modo semelhante, que aumentamos a caridade em nós, que a fazemos transbordar. Se vivemos com relaxo e tibieza podemos ter nossa vida cristã completamente paralisada, mesmo se vivemos na graça de Deus e praticamos muitas boas obras.

Vemos uma multidão de boas pessoas que vivem habitualmente na graça de Deus, levando 40 ou 50 anos de vida religiosa em um mosteiro talvez, praticando uma infinidade da boas obras e de sacrifícios, mas que estão longe de ser santas. Se são contrariadas se irritam; si lhes falta algo se queixam muito; se os superiores ordenam algo que não gostam, murmuram ao menos interiormente; se alguém os critica tornam-se inimigos; etc, etc.

Como isso se explica, depois de tantas boas obras praticadas como bons leigos, religiosos e padres? Praticaram boas obras, é verdade, mas de modo frouxo e tíbio, não com atos mais ferventes e sim cada vez mais remissos e imperfeitos. O termômetro da caridade não apresentou aumento.

Existe um meio de ajudar a aumentar o fervor da caridade em nós: meditação.

No Salmo 39 Davi diz que na sua reflexão um fogo se acendeu: et in meditatione mea exardescet ignis. É esquentando nosso coração na meditação que nossos pedidos sobem aos Céus como o incenso sobe do turíbulo em brasa, com um odor agradável a Deus. É na meditação que nosso amor por Ele aumenta, que Deus nos ouve e a partir da qual esse amor transborda sobre o próximo pelas nossas ações. São Boaventura não tinha outra visão da oração:

Se vós quereis sofrer com paciência as adversidades e misérias desta vida, sejam homens de oração; se quereis adquirir a virtude e a força para vencer as tentações do inimigo, sejam homens de oração; se quereis que vossa vontade própria morra com todos seus afetos e desejos, sejam homens de oração; se quereis conhecer as trapaças de Satanás e vos defender de suas armadilhas, sejam homens de oração; se quereis desenraizar de vossa alma todos os vícios e plantar as virtudes no lugar, sejam homens de oração“.

São Vicente de Paulo dizia que “Deus não recusa nada à oração e não dá quase nada sem oração“. Mas, ainda que não ouçamos estes santos, temos a promessa de Nosso Senhor no Evangelho de hoje: “Em verdade, em verdade vos digo, tudo o que vós pedireis ao meu Pai ele vos dará em meu nome“.

Em verdade, em verdade vos digo“. O Verbo deu sua palavra, nos garantiu que nos atenderia! Para nos garantir Nosso Senhor foi mais além. Contou a parábola do amigo inoportuno. À meia-noite recebe uma visita que ainda não havia jantado. Todos os comércios estavam fechados. Vai e bate à porta de seu vizinho: “Dai-me um pedaço de pão”. “Não, estamos dormindo”. “Não, não estão dormindo”. Estamos sim, deixe-nos dormir!” E continua chamando à porta. Por fim o vizinho abra a janela. “Aqui tens o pão, deixe-nos dormir!” E Jesus nos diz: “Fazei assim vós também com o vosso Pai do Céu”.

Nós nunca teríamos nos atrevido a fazer uma comparação dessas e Cristo a fez. E em todo o Evangelho encontramos esta lição, até a Última Ceia, no Evangelho de hoje: “Pedi e recebereis. Tudo o que pedirdes a meu Pai em meu nome Ele vos concederá“. Santo Afonso diz no seu Pequeno tratado da oração: “Todos os santos estão no Céu porque rezaram muito. Seriam menos santos se rezassem menos e não estariam no Céu se não tivessem rezado“.

Sei de padres mais velhos que infelizmente presenciaram, há algumas décadas, a apostasia de um número considerável de seminaristas, padres e religiosos. Todos estes apostataram, com algumas exceções, porque deixaram de rezar. Alguns por zelo: “As almas precisam de atenção”, como se eles mesmos não tivessem uma alma para cuidar. Outros por preguiça ou vergonha ou desânimo. De qualquer modo, todos tinham parado de rezar. Para quem reza com assiduidade Deus dá, pouco a pouco, tanta luz e o fortalece tanto que o pecador mais afogado pode se levantar, ainda que esteja submerso na lama até o pescoço.

Podemos rezar alguns mistérios do terço indo de casa até uma loja, fazer uma comunhão espiritual no carro durante o tempo em que o semáforo está vermelho, rezar uma Ave Maria a cada hora que começa, o Ângelus antes de comer, etc. Um católico nunca diz que não tem nada para fazer. Sempre pode rezar. É o mais fácil que se pode fazer na terra e é justamente a essa facilidade que Deus ligou a salvação da alma, porque é nela que o fogo do amor de Deus se acende e é por este amor que seremos julgados no fim da vida.

Na tarde da vida tudo passa, só permanece o amor. É preciso fazer tudo por amor.

Em nome do Pai e do Filho + e do Espírito Santo. Amém.

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