Considerações escolásticas sobre a família

Disponibilizaremos, quinzenalmente, aos nossos leitores, os apontamentos que resumem os cursos de Filosofia, dados na Paróquia São Paulo Apóstolo. Esperamos, assim, que aqueles que se vêem impossibilitados de frequentar presencialmente as aulas na paróquia possam, em certa medida, tirar proveito do conteúdo que é oferecido.

Os cursos de Filosofia ocorrem todas as terças-feiras, das 20h00 às 21h00, na paróquia. As pessoas interessadas em assistir só precisam comparecer, sem necessidade de pagar qualquer taxa de inscrição ou mensalidade.

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Índice:

I. Uma pequena introdução: o que é a Filosofia e qual é o seu método de estudo
II. O que é uma família?
III. Que leis regem a família?

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I. Uma pequena introdução: o que é a Filosofia e qual é o seu método de estudo

O que diferencia uma ciência de outra é o objeto que cada uma estuda. Objetos de estudo diferentes constituem ciências diferentes.

Assim, a Matemática estudará as quantidades, expressas por números. A Biologia estudará os seres vivos. Quantidades e seres vivos não são a mesma coisa, são objetos diferentes, e por isso são estudados por ciências diferentes.

Mas aqui devemos ainda dar mais um passo. Um nutricionista pode estudar uma maçã. Ela também pode ser estudada por um físico, por um botânico, por um economista. É evidente que a Física, a Botânica, a Economia e a Nutrição são ciências perfeitamente diferentes. Porém, todas podem estudar o mesmo objeto: uma maçã. Se neste caso o objeto é o mesmo, porque temos ciências diferentes?

Temos ciências diferentes porque cada uma delas não estuda a maçã sob o mesmo aspecto. Um físico estudará aspectos diferentes da maçã, que não serão considerados pelo economista. O economista estudará a maçã sob outros aspectos. Assim também o botânico e o nutricionista.

Neste caso, no qual usamos uma maçã como exemplo, podemos dizer mais exatamente que o objeto material estudado por estas quatro ciências será o mesmo: um fruto chamado maçã. Mas cada uma dessas ciências estudará o mesmo objeto material sob aspectos e considerações diferentes, e diremos que o objeto formal será diferente em cada ciência. O que o economista busca conhecer da maçã não é o que o botânico busca conhecer dela. Assim também o físico e o nutricionista.

Assim, mais exatamente, dizemos que ciências diferentes são determinadas por objetos formais diferentes. A sociologia estuda o homem. A medicina estuda o homem. O objeto material de ambas é o mesmo. Mas elas não estudam o homem sob o mesmo aspecto, nem buscam conhecer dele as mesmas coisas. Elas têm objetos formais diferentes e, portanto, são ciências diferentes.

Apliquemos agora, à Filosofia, isto que acabamos de ver de modo muito rápido.

A Filosofia é uma ciência que procura nos dar um conhecimento, um conhecimento no sentido pleno da palavra: conhecer com certeza, e podendo dizer por que uma coisa é tal como é, não podendo ser de outro modo. Em outras palavras, consiste em saber as causas das coisas.

A Filosofia procura conhecer aquilo que estuda usando a luz natural da razão. A inteligência humana tem um vigor próprio, uma capacidade natural de conhecer a verdade. É usando essa capacidade que a Filosofia procura conhecer as coisas.

O quê a Filosofia procura conhecer? Basta darmos uma olhada no que os gregos que se dedicavam à Filosofia estudavam: o bem e o mal, a mudança dos seres, como conhecemos as coisas, os seres vivos e não-vivos, o homem, Deus… A Filosofia se ocupa de tudo.

Isso não quer dizer que ela seja uma espécie de somatória de todas as ciências que existem. A Filosofia não é a união final das matemáticas, das ciências biológicas, das ciências humanas em geral, sendo uma espécie de totalidade do conjunto de ciências existentes. A Filosofia não é isso. Ela é uma ciência própria, distinta das outras.

Mas como a Filosofia pode ser uma ciência diferente das outras se ela estuda todas as coisas? Aqui precisamos nos perguntar qual é o ponto de vista, o aspecto que ela considera ao estudar todas as coisas. Em tudo o que existe, o que é do interesse da Filosofia? O que ela procura considerar em tudo? Pois considerações diferentes de algo produz ciências diferentes.

Se ela estuda o homem, será para conhecer o número de ossos que tem, ou a causa de suas doenças? Não. Estes aspectos do homem serão considerados pela anatomia e pela medicina.

A Filosofia se tem interesse em saber se o homem possui uma inteligência que o diferencia absolutamente dos outros animais, se ele tem uma alma, em que consiste a felicidade do homem, se em Deus ou em outra coisa, etc. Depois disso, não é possível colocar questões mais elevadas, nem ir mais além.

Digamos que a Filosofia vai procurar nas coisas as causas mais elevadas que explicam o porquê de elas serem como são. Ela procura as explicações mais elevadas, além das quais a inteligência humana não pode ir naturalmente. A Filosofia procura conhecer os princípios supremos que fundamentam todas as coisas e que as fazem ser o que são.

Por isso é o conhecimento humano mais elevado que pode existir. Como é próprio à sabedoria considerar as coisas pelas suas causas mais elevadas, a Filosofia é realmente uma sabedoria e torna sábio quem a tem. O sábio considera as coisas pelas causas mais elevadas.

A Filosofia consegue abarcar tudo que existe com um pequeno número de princípios e enriquece a inteligência sem sobrecarregá-la. O conhecimento que a Filosofia dá tem a característica de ser muito leve e ao mesmo tempo muito profundo e sólido. Por isso, satisfaz a inteligência com poucos princípios que são muito fecundos. A Filosofia dá para a inteligência humana um conhecimento que é leve e, ao mesmo tempo, muito nutritivo.

II. O que é uma família?

Como nosso contato com tudo o que existe acontece pelos sentidos, só há um modo de começar um estudo sério sobre a família: vendo como as coisas acontecem normalmente, do modo como nossos sentidos nos mostram as coisas acontecendo.

Pois bem, nós vemos que existe em cada pessoa uma inclinação natural à união entre o homem e a mulher e que o efeito dessa união é a geração de filhos. É um fato: os homens se inclinam às mulheres, e as mulheres se inclinam aos homens. Mais adiante veremos como essa inclinação entre os homens e as mulheres deve ser governada pela inteligência. Por enquanto, nos contentaremos com a simples constatação de que ela existe. Esta inclinação e seus efeitos se mostram, por si sós, como algo único entre tudo o que existe. Por isso merece um nome particular: família.

A inclinação natural que os homens têm pelas mulheres, e que as mulheres têm pelos homens, termina na vida em comum entre um homem e uma mulher, e na geração de filhos. Esta realidade, que faz parte do gênero humano, não é comparável à nenhuma outra coisa.  Por isso, merece um nome especial, o nome de família.

Mas aqui gostaria de fazer uma observação. Infelizmente, em nossa época, temos uma noção muito estreita de família. Isso é visível quando olhamos o modo como os escolásticos definiam a família:

A família inicia-se a partir da sociedade do homem e da mulher, sem a qual o gênero humano não poderia ser propagado ou conservado. Desta união segue-se, imediatamente depois, a sociedade dos filhos com os pais, porque a primeira união está ordenada à educação dos filhos. A estas duas sociedades vem-se unir uma certa união de servidão e de senhorio porque, moralmente falando, os homens precisam da ajuda e do serviço dos outros homens” (Francisco Suarez, De legibus, l. 3, c. 1, n. 3).

A família e uma sociedade composta de três sociedades simples, a saber: a sociedade conjugal ou matrimônio (marido-esposa), a sociedade parental (pais-filhos) e a sociedade do senhor da casa (em relação aos funcionários que ajudam a casa).

São Tomas Morus, quando viajava, perguntava nas suas cartas não somente sobre seus filhos, mas também sobre os empregados, interessado no bem estar deles.

Os escravos e empregados sempre foram vistos como membros da família, na Antiguidade e entre os católicos. Os protestantes mudaram essa visão.

A família inicia-se a partir da sociedade do homem e da mulher, sem a qual o gênero humano não poderia ser propagado ou conservado. Isso é evidente, e não precisa ser demonstrado. Qualquer outra união (entre dois homens, ou entre duas mulheres) é por si mesma incapaz de gerar filhos. Se a existência do gênero humano dependesse da união entre dois homens, ou entre duas mulheres, estaria certamente condenada a desaparecer.

Por este motivo óbvio, não é possível dizer que a união entre um homem e uma mulher seja igualável à união entre dois homens, ou entre duas mulheres.

Com esta união entre um homem e uma mulher forma-se a sociedade matrimonial, que recebe o nome de matrimônio pelo fato de que conceber os filhos cabe propriamente à mãe: matris munus (função da mãe)matrimonium. É só a mulher que tem em si mesma como gerar e alimentar inicialmente os filhos.

Procurar os bens necessários a sustentar e proteger esta sociedade cabe primeiramente ao pai: patris munuspatrimonium.

Mais adiante falaremos dessa responsabilidade que o pai tem de sustentar e proteger os membros da casa.

Esta união entre o homem e a mulher é absolutamente necessária à propagação do gênero humano e à formação dos filhos.

A atribuição de uma igualdade de valor entre o matrimônio e as uniões contrárias à natureza é totalmente gratuita e destituída de fundamento na realidade. Isto é evidente pelos efeitos. Uma produz frutos, as outras não.

Uma causa só pode produzir um efeito se tem a virtude, a capacidade de produzi-lo. Ora, aquele que tem em si uma capacidade que está ausente em outro lhe é superior.

A atribuição de igualdade de valor às diversas uniões possíveis na prática é fundamentada na recusa da realidade.

[Uma pequena digressão: Não deixa de ser curioso o fato de que as mesmas pessoas que pretendem haver igualdade de condições e de valor entre a união de um homem e de uma mulher, com as uniões entre dois homens ou entre duas mulheres, são os mesmos que se revoltam quando vêem grandes propriedades de terra permanecerem improdutivas. É paradoxal que estas pessoas achem um absurdo a improdutividade da terra, dizendo que ela tem como finalidade a produção de alimentos e, ao mesmo tempo, sejam a favor da união homossexual, que usa a capacidade de gerar filhos de um modo estéril, sem terminar na geração de filhos]

É comum ouvir que essa visão das coisas é preconceituosa. Isso não é verdade.

No sentido próprio da palavra, um preconceito é um conceito que tem sua origem sem qualquer análise prévia. É um conceito que se tem antes de se analisar a questão de modo minimamente razoável.

Ora, não é o que estamos fazendo aqui. Aqui, nós formamos propriamente um pós-conceito, um conceito e um juízo sobre algo, depois de tê-lo considerado de modo razoável, naquilo que ele é em si, construído sobre dados evidentes.

III. Que leis regem a família?

A sociedade conjugal inicia-se pelo matrimônio. É importante conhecer as leis que o regem, deduzindo-as da realidade.

Uma primeira constatação é a de que o gênero humano permanece, e os indivíduos passam.

Há uma distinção entre cada indivíduo em particular e a sociedade que eles formam.

Essa sociedade só pode existir, na ordem natural das coisas, pela união de um homem e de uma mulher. Sem essa sociedade conjugal não há continuidade e manutenção da sociedade humana.

Quase todos os direitos e deveres humanos giram em torno desses dois pólos: o indivíduo e a espécie.

Essa sociedade conjugal será regida pelos princípios que são compatíveis com a natureza dos membros que a compõem. Os cônjuges são seres humanos, são animais racionais, e essa diferença específica, esta racionalidade, dirá como devem ser as leis que regem a família.

De modo mais simples: a família é estabelecida sobre certos princípios, que devem ser adequados à racionalidade humana e que são conhecidos pela aplicação da inteligência para saber o que é compatível com a natureza racional ou não. As leis que governam a família nada mais são do que a introdução, na prática, de inteligência nessa união entre um homem e uma mulher, e na relação entre eles e os frutos dessa união: a geração e a educação dos filhos.

Por isso, para saber o que é uma família e como ela deve ser organizada, é preciso se dar conta que:

  1. A geração dos vegetais é uma simples função orgânica → regida pelas leis orgânicas.
  2. A geração dos animais envolve o uso dos sentidos → regida pelas leis do instinto.
  3. A geração dos homens é um ato humano → regido pelos princípios racionais da moral.

A sociedade doméstica tem a primazia sobre a sociedade civil:

  1. Primazia lógica: A família é o princípio gerador necessário dos indivíduos.
  2. Primazia cronológica: primeiro há a sociedade conjugal, para geral os indivíduos de uma sociedade.

Portanto, a família é uma instituição natural. Ela tem sua origem na natureza humana. Mais ainda: ela gera vidas humanas, forma essas vidas e as aperfeiçoa.

Ela tem sua origem na natureza humana. Ora, as naturezas, o ser das coisas, são imutáveis. Logo, essa instituição natural é estável e imutável.

O fruto dessa união entre um homem e uma mulher é a geração de um indivíduo, um ser único e membro do gênero humano. Ora, esta finalidade é superior à instabilidade das paixões. Portanto, as paixões não podem ser o fundamento da família.

Também: essa finalidade exige estabilidade para ser realizada. Logo, as paixões, que são por natureza instáveis e passageiras, não podem ser o fundamento da família.

Se as paixões passam a ser o fundamento da sociedade conjugal, essa sociedade será passageira. Mas se o fundamento dessa sociedade é uma finalidade que permanece, essa sociedade será estável.

A realização concreta desta sociedade conjugal pode variar com o tempo e os lugares: as relações sociais entre os cônjuges, a liberdade com que se escolhem, a autonomia relativa da mulher, a base da economia doméstica, o regime de comunhão de bens.

São coisas influenciadas pelas condições sociais, pelos costumes, pelas preocupações filosóficas e pela cultura de um povo.

Esses elementos mutáveis são importantes e devem ser respeitados, contanto que estejam de acordo com a lei moral natural. Eles garantem a existência concreta e real de uma família em situações e culturas muito diversas.

Mas há uma organização que permanece intocável.

A sociedade conjugal é exigida pela própria natureza humana como condição indispensável de sua existência, formação e aperfeiçoamento. As duas finalidades essenciais da sociedade conjugal, conservar a espécie e assegurar a felicidade dos cônjuges, são estáveis e imutáveis.

Qual é o fundamento dessa afirmação?

  1. Conservar a espécie.
  2. Felicidade dos cônjuges.

a) Porque um ser só é perfeito quando ele é capaz de produzir outro igual a si mesmo.

b) Porque para viver bem é necessário ter a ajuda de outros. Ninguém basta a si mesmo, nem consegue suprir todas as suas próprias necessidades sozinho.

c) Pela troca mútua de afetos.

O que é passageiro está subordinado ao que é permanente. O bem particular deve estar subordinado ao bem universal. O bem menor deve estar subordinado ao bem maior.

A ajuda mútua que os esposos se dão, e a troca de afetos, têm a duração de uma vida humana. Mas a geração de outros indivíduos se dirige à perpetuação do gênero humano no futuro, ultrapassando a duração de uma vida particular. Os indivíduos passam, a sociedade permanece.

Essas considerações nos dão uma base científica para investigar as leis essenciais que regem a sociedade conjugal. Base científica, não no sentido dado à ciência moderna, que erroneamente só considera como científico o que segue leis matemáticas e pode ser testado em laboratório, mas científico no sentido tomista de ciência: o conhecimento certo pelas causas, o conhecimento dos porquês das coisas, por demonstração a partir de verdades certas.

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A estrutura de um instrumento é determinada pela sua função. Uma faca só tem uma lâmina porque, antes de ser feita, determinou-se que sua função seria a de cortar. O estômago só tem sua estrutura própria porque sua finalidade é a de digerir.

Do mesmo modo, a estrutura da família é determinada pela sua função, sobretudo pela sua função mais importante.

As leis de uma sociedade são determinadas pelas suas finalidades, do mesmo modo que as leis que determinam o uso de um objeto são determinadas pela finalidade desse objeto. Não usar algo de acordo com sua finalidade é estragá-lo, inutilizá-lo. Isso é maximamente válido para a família.

Vejam aqui como nosso procedimento é rigorosamente científico. Não estamos brincando de amadorismo, caminhando na areia movediça dos apriorismos subjetivos, passando por idéias inadequadas. Estamos pondo os pés no terreno sólido da realidade.

Esse modo de funcionamento não precisa ser o melhor em cada caso concreto. Não se exige que só apresente sempre vantagens e nunca tenha inconvenientes reais. Sempre haverá casos em que, por circunstâncias excepcionais, uma ou outra família da sociedade terá sérias dificuldades em se manter existindo, em paz e harmonia (como pede o Catecismo de São Pio X), sendo fiel aos princípios inegociáveis que regem qualquer família. O que basta é que este modo de funcionamento básico de qualquer família, baseado na realidade, seja o único a reunir todas as condições exigidas para que a finalidade do casamento seja alcançada.

Basta que, fora dele, não se possa encontrar outra estrutura capaz de assegurar ao gênero humano os resultados que precisam ser alcançados.

Se encontrarmos essas condições, então estaremos diante da constituição natural da família.

Essa estrutura não deve se adaptar a este ou àquele caso particular. Todos devem se adaptar a ele, o quanto for possível, pois é a lei que rege a união conjugal. Desmontar os princípios, sacrificando-o a casos particulares, é prejudicar o bem comum, inevitavelmente. E quando o bem comum é prejudicado, nem aquele caso particular será beneficiado. Será uma solução aparente para aquele caso particular, mas na verdade um prejuízo para todos.

O bem comum tem a primazia, mesmo com o sacrifício de um ou outro bem individual.

Sendo assim, vejamos agora qual é a estrutura à qual toda família deve se acomodar, por causa de sua essência, e de sua finalidade. Fugir dessa organização será encaminhar a sociedade até a ruína. O que vemos hoje é exatamente isso: a negação da realidade, a exigência de que cada família siga leis caprichosas, sem fundamento na realidade, e a ruína da vida social (e a perda das almas, na ordem sobrenatural).

A monogamia indissolúvel

A primeira finalidade da união conjugal é a conservação do gênero humano. Morrer é uma necessidade da natureza. Só há um modo de compensá-la: a geração de novos indivíduos de uma espécie. Cada geração que passa transmite, à geração seguinte, a vida e as particularidades que lhe são específicas.

Nos seres humanos, a transmissão da vida é uma obrigação moral.

[Digressão]

O que quer dizer obrigação moral?

Santo Alberto Magno diz que «o nome não é outra coisa do que uma implícita definição; e a definição é a explicação detalhada do nome».

Mos, moris = costume

É algo relacionado aos atos humanos. Mas todo ato humano é feito com inteligência e vontade livre.

Moral, portanto, é um adjetivo relacionado a algo que depende da inteligência e da vontade.

Ex: Coação  moral; causalidade moral.

Dizer que “nos seres humanos, a transmissão da vida é uma obrigação moral” significa que é algo compreendido pela inteligência como conforme a ordem das coisas e, por causa disso, obrigando a vontade.

Ver a lei natural como algo que coage a liberdade da vontade é fruto de um erro de consideração sobre o que é a lei natural e como ela existe no homem.

Ela é uma participação, na inteligência, da Lei Eterna. Ela é participada por um ato livre de conhecimento intelectual e de adequação livre da vontade à ordem que Deus colocou no mundo.

Deus é como um monarca que explica aos seus ministros dotados de inteligência as diretrizes do seu governo e o modo de executá-las.

“(…) supondo que o mundo seja governado pela Divina Providência, como estabelecemos na Primeira Parte (q. 22, a. 1, a. 2), é manifesto que todo o conjunto do universo é governado pela razão divina. Por onde, a razão mesma do governo das coisas, em Deus, que é o regedor do universo, tem a natureza de lei. E como a razão divina nada concebe temporalmente, mas tem o conceito eterno, conforme a Escritura (Prov. 8, 23), é forçoso dar a essa lei a denominação de eterna” (Suma Teológica I-II, q. 91, a. 1, c.).

Como já dissemos (q. 90, a. 1), sendo a lei uma regra e medida, ela pode estar de dois modos num sujeito: como no que regula e mede, e como no regulado e medido; pois, na medida em que um ser participa da regra ou da medida, nessa mesma é regulado ou medido. Ora, todas as coisas sujeitas à Divina Providência são reguladas e medidas pela lei eterna, como do sobredito resulta (a. 1). Por onde é manifesto, que todas participam, de certo modo, da lei eterna, enquanto que por estarem impregnadas dela se inclinam para os próprios atos e fins. Ora, entre todas as criaturas, a racional está sujeita à Divina Providência de modo mais excelente, por participar ela própria da providência, provendo a si mesma e às demais. Portanto, participa da razão eterna, donde tira a sua inclinação natural para o ato e o fim devidos. E a essa participação da lei eterna pela criatura racional se dá o nome de lei natural. (…) o lume da razão natural, pelo qual discernimos o bem e o mal, e que pertence à lei natural, não é senão a impressão em nós do lume divino. Por onde é claro, que a lei natural não é mais do que a participação da lei eterna pela criatura racional” (Suma Teológica I-II, q. 91, a. 2, c.).

“Mesmo os animais irracionais participam, a seu modo, da razão eterna, como a criatura racional. Mas como esta participa dela  intelectual e racionalmente, por isso essa participação da lei eterna pela criatura racional chama-se propriamente lei; pois, a lei é algo de racional, como já dissemos (q. 90, a. 1). Ora, a lei eterna não é participada racionalmente pela criatura irracional; portanto, só por semelhança pode-se chamar lei a essa participação” (Suma Teológica I-II, q. 91, a. 2, ad 3).

A Lei Eterna se comunica aos diversos seres existentes. Cada ser tem um modo próprio de recebê-la.

A pedra se dirige ao centro que a atrai sem qualquer conhecimento do que se passa.

Os animais seguem seus instintos sem colocar qualquer resistência, sem discutir, de modo ininteligente.

Mas o homem, por sua razão, participa de algum modo da sabedoria divina. Sua orientação até sua finalidade é racional.

A lei natural humana é uma inclinação inteligente e espontânea para o seu bem.

É um conhecimento, alcançado pela inteligência humana, da ordem que Deus colocou nas coisas.

Isso implica conhecer uma finalidade para a qual cada coisa se dirige; uma ordem adequada para alcançar esta finalidade; a relação existente entre os seres; uma causa eficiente dessa ordem.

Por isso negar a existência da Lei natural é negar, finalmente, a existência de Deus.

No corpo humano, por exemplo, cada órgão está adaptado à sua função particular, e todos os órgãos juntos produzem um movimento harmônico e um só resultado final.

Cada ser que age está ordenado à sua atividade própria e ela entra em uma ordem geral.

Um materialista analisa o problema da existência de uma ordem no mundo de modo superficial. É como alguém que quer explicar o funcionamento de um motor já feito pela descrição do funcionamento de cada peça, sem querer ver as relações entre as peças.

[Voltando…]

Nos seres humanos, a transmissão da vida é uma obrigação moral. Isso quer dizer que a inteligência humana vê a ordem que Deus colocou nas coisas e, ao contrair matrimônio, os dois cônjuges compreendem que a geração dos filhos é um dever moral que lhes é imposto pela ordem das coisas. Esse dever é imposto pela ordem do mundo, pela necessidade que o gênero humano tem da geração dos filhos para continuar existindo, face à morte que inevitavelmente atinge a todos, mas foi aceito livremente por eles, quando trocaram o consentimento ao casar.

A função primordial da família é cumprir esse dever.

É simplesmente impossível gerar um novo ser humano fora da união conjugal. Qualquer outra coisa deve ser vista como algo contrário à essa obrigação moral e à existência do gênero humano.

Pela natureza da questão, essa obrigação é evidentemente grave, e ir contra ela é, consequentemente, falta grave.

O que quer dizer gerar um ser humano?

Gerar um ser humano não pode ser, simplesmente, lhe transmitir a vida.

É necessário assegurar os meios que tornem a vida transmitida capaz de ser levada como ela o deve ser por um ser racional.

A geração, sem a educação que deve ser dada, é um ato imperfeito, inútil e sem finalidade na espécie humana.

O gênero humano só pode permanecer ao longo do tempo se houver a geração e a educação de novos indivíduos. Sem a educação necessária o gênero humano não consegue se manter como deve.

É necessário formar os filhos e explicar como essa vida deve ser vivida de modo humano. Sem a formação dos filhos, a geração deles é um ato inútil. Geração e educação são funções complementares. A natureza humana exige uma e outra.

Para a manutenção da vida física

Um recém-nascido depende em tudo dos pais. A única coisa que pode fazer sozinho é respirar. Ele é a expressão da mais completa incapacidade.

Essa necessidade dura anos e anos: lactação, idade escolar, puberdade.

Em todos estes períodos, o indivíduo não se basta a si mesmo: a higiene que deve ter para conservar a saúde, ajuda nas doenças, os exercícios físicos que devem ser feitos, o que deve ser aprendido para a vida de casado, tudo isso exige a dedicação, a instrução e a experiência dos pais.

Eles transmitiram a vida, então têm a obrigação de fazer com que ela seja vivida de modo humano e de fazer com que ela seja digna de ser vivida.

Todos estes sacrifícios longos e penosos somente para formar um belo animal.

Mas o homem não é só isso, não é principalmente isso. Os pais devem tomar um cuidado grande de não ver seus filhos com uma alegria própria dos pagãos, ao observar que seus filhos dão todos os sinais de vir a ser, num futuro próximo, um homem cheio de energia e de vigor físico e de beleza. Igualmente com relação às suas filhas, ao verem que vão adquirindo as características de uma mulher adulta. Ao fundar uma família, os pais não fundaram um criadouro de belos animais, onde o esforço e o dinheiro investidos servem para fazer belos animais de corrida. A finalidade primeira do casamento não é somente a geração dos filhos, mas também sua educação.

A força física de um rapaz e os encantos de uma moça, por mais que ajudem em muitas coisas, não ajudam em nada a sociedade se eles não têm virtude.

A virtude é um hábito bom, que torna bom quem a tem e as obras que ele faz”. Esta é a definição dada por Santo Agostinho e usado sem cessar por Santo Tomás.

O bom desenvolvimento físico de um indivíduo não é suficiente para dar conta das necessidade da sociedade. Como dizia um padre que conheço, considerando como a sociedade atual não tem qualquer preocupação com virtude e bondade, “a pior coisa que pode acontecer a alguém, atualmente, é que ele nasça bonito, rico e inteligente”. Porque, sem virtude, estas três coisas fazem um estrago…

(continua)

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