Sermão da Festa da Transfiguração de Nosso Senhor

Jesus tomou consigo a Pedro, e a Tiago, e a João, seu irmão, e os conduziu em particular a um alto monte.

(S. Mateus XVII, 1)

[Este sermão é copiado, quase na sua totalidade, de algumas páginas do livro “As três idades da vida interior”, do Pe. Réginald Garrigou-Lagrange, OP]

Em nome do Pai e do Filho + e do Espírito Santo. Amém.

Ave Maria…

A diversidade de temperamentos, de caracteres, de fisionomias espirituais na Igreja, é, muitas vezes, uma ocasião de sofrimentos salutares, mas também, ai de nós, de falta de caridade, de irritação, de impaciência, de julgamentos temerários. Na nossa estreiteza, gostaríamos que todas as almas fossem absolutamente iguais, tivessem o mesmo atrativo dominante que nós. Graças a Deus, isto não é assim. A harmonia da Igreja, inclusive a das Ordens Religiosas e mesmo das comunidades, exigem uma certa diversidade. São Bento, São Domingos, São Francisco, Santo Inácio, Santa Teresa, etc., não eram iguais. “Existem várias moradas na casa de meu Pai” disse Nosso Senhor. Essa afirmação de Nosso Senhor é muito mal compreendida. Atualmente, muitos a entendem no sentido de que na Igreja há espaço para todo tipo de afirmações, práticas morais e pastorais, mesmo as mais descabidas, as mais destituídas de fundamento teológico, as mais incompatíveis com o catecismo mais elementar. Não é isso que Cristo quis dizer, como se na Igreja houvesse espaço para tudo e o contrário de tudo…

Para nos esclarecer sobre esse ponto, convém considerar as diferentes formas de santidade que respondem a atrativos dominantes diversos e a provações diferentes. Cada uma dessas fisionomias espirituais tem a sua grandeza e a sua beleza.

A santidade aparece sob três formas bem distintas que respondem aos três grandes deveres para com Deus: o conhecê-lo, amá-lo, servi-lo. Todo cristão, sem dúvida, deve observar cada um desses três deveres; mas, na Igreja, tal pessoa sobressai em tal função e aquela em tal outra. Cada uma dessas almas tem seu defeito dominante a vencer, um obstáculo especial a evitar e é por isto que o Senhor envia, a cada uma, provações apropriadas.

Nosso Senhor, na formação das almas, encontra um modo de tudo utilizar. Ele não toma a alma de um homem de ação, devorado pelo zelo, do mesmo modo como Ele age com a alma de um missionário, ou a de um teólogo; de um santo Tomás, como a de um Santo José de Anchieta.

Contemplemos sucessivamente essas três formas de santidade, que parecem representadas, como já se disse várias vezes, em três apóstolos privilegiados que Nosso Senhor conduziu ao Tabor, depois a Gethsemani: Pedro, João e Tiago.

  1. Há almas que se aproximam mais de Deus pelo exercício dos atos de amor, na vontade. São arrebatadas antes de tudo por graças de amor; elas se dirigem ao bem com zelo e firmeza e se perguntam muitas vezes: “O que eu farei para Deus?”. Elas têm uma sede ardente de sofrer, de se mortificar, para provar a Deus seu amor, de reparar as ofensas das quais Ele é objeto, de salvar os pecadores. Só secundariamente elas se aplicam a melhor conhecer Deus. Deste grupo de almas parecem fazer parte o profeta Elias, “cheio de zelo pelo Senhor” (3 Reis 19, 10), São Pedro crucificado de cabeça para baixo por humildade e amor por seu Mestre, os grandes mártires Santo Inácio de Antioquia e São Lourenço, o seráfico Francisco de Assis. Do mesmo modo, no apostolado e devotamento ao próximo, São Carlos Borromeu, São Vicente de Paulo. Todas essas almas são mais notáveis pela sua caridade, pelo arrebatamento de sua vontade para Deus, do que por grandes luzes na inteligência. O perigo dessas almas está na própria energia de sua vontade, que poderia degenerar em rigidez, tenacidade e obstinação. Nas menos fervorosas dentre elas, é um defeito dominante bastante visível: seu zelo não é suficientemente esclarecido, nem bastante paciente e doce. Algumas delas podem se entregar demais a obras ativas às custas da oração. As provações que o Senhor lhes envia tendem sobretudo a amansar sua vontade, muitas vezes a quebrá-la, quando ela se torna rígida demais. Ele permite revezes manifestos, para que o ardor natural seja substituído por um zelo verdadeiramente sobrenatural, desinteressado, paciente e manso.
  1. Num segundo grupo de almas, predomina o uso da inteligência, não da vontade. Elas têm graças de luz. Essas almas são, inicialmente, esclarecidas por graças de iluminação; elas são levadas a se deleitar na contemplação de Deus, nas grandes visões de conjunto que fazem o valor da sabedoria. É somente por via de crescimento nesse conhecimento que o amor delas cresce. Elas sentem menos necessidade de agir, em relação ao primeiro tipo de almas e que falamos, de se mortificar, de sofrer para reparar; mas elas são fiéis, chegam ao amor heroico por esse Deus que as encanta. A esta família de almas pertencem São João Evangelista com seu Evangelho contemplativo já no seu Prólogo, e os grandes Doutores da Igreja, um Santo Agostinho, um Santo Anselmo, um Santo. Alberto Magno, um Santo Tomás de Aquino, muitos outros que foram como faróis que mostraram à humanidade o caminho que leva a Deus. O perigo para essas almas, quando são menos perfeitas, é de se contentar com as luzes que lhes são dadas e de não conformarem bastante suas vidas com estas luzes. Sua inteligência é fortemente iluminada, mas na vontade, muitas vezes, falta ardor. As luzes que elas recebem consolam-nas, elas têm uma atração maior pela oração contemplativa; mas precisam pedir perdão muitas vezes por sua falta de energia. Seu amor pela verdade faz com que elas sofram particularmente com o erro, com as falsas direções doutrinais, que extraviam as inteligências. Isto é para elas uma grande cruz e um estímulo para trabalhar para fazer conhecer a Deus.
  1. Enfim, existem almas que têm, sobretudo, por missão servir a Deus pela fidelidade ao dever quotidiano. A faculdade que mais se exerce entre elas, é a memória; sua atividade é de ordem prática. É o caso da maior parte dos cristãos. Sua memória os torna atentos aos fatos particulares; eles são tocados pelos Evangelho e pela vida da Igreja. Essas almas são facilmente tocadas por uma palavra da liturgia, um traço de vida de um santo. A inspiração divina lhes dá mais raramente grandes visões de conjunto, mas as inclina a um conhecimento muito prático e vivido das coisas divinas e a um grande amor de Deus e do próximo. Elas podem assim alcançar os mais altos graus da santidade. São Tiago é figura dessas almas. O defeito delas é o de se apegar demais às práticas, boas nelas mesmas, mas que não conduzem imediatamente a Deus; a certas austeridades exteriores ou orações vocais. Corre-se o risco então de cair na minúcia, nos escrúpulos, de se apegar sem medida a métodos, úteis no início, mas um pouco mecânicos demais; e isto pode impedir a intimidade da união com o Senhor. As provações dessas almas se encontram geralmente menos na vida interior que na prática da caridade fraterna e no exercício de seu devotamento. Elas têm muito a sofrer com defeitos do próximo e com os obstáculos que encontram nas obras em que se ocupam.

Tais são as três formas de santidade que parecem manifestadas pelos três apóstolos privilegiados, Pedro, João e Tiago, que Nosso Senhor conduziu com Ele ao Tabor e depois a Gethsemani. Todas essas almas são chamadas, por formas variadas, à contemplação dos mistérios da fé e à união íntima com Deus, e quanto mais elas se aproximam do cume para o qual tendem, mais se assemelham, mais são marcadas pela imagem do Cristo, sem perder no entanto sua fisionomia especial. E nessa sociedade visível que Nosso Senhor fundou, que é a Igreja, devemos nos apoiar uns nos outros para completar as falhas que temos.

Em Jesus Cristo, essas três formas de santidade se uniram em perfeito equilíbrio. Nossa busca pela perfeição se dirige até essa santidade infinita de Nosso Senhor. É necessário ter paciência, porque é um trabalho para toda a vida. O que não podemos fazer é diminuir a vida de Nosso Senhor, querendo explicá-la demais pela nossa psicologia pessoal. Foi assim que se propôs ao mundo um Cristo rigorista e em seguida, por reação, um Cristo liberal. Elevemo-nos para Ele, ao invés de rebaixá-Lo a nós. Ele está incomparavelmente acima de nossos sentimentos mais generosos e Ele não tem ilusões.

Em nome do Pai, e do Filho + e do Espírito Santo. Amém.

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